segunda-feira, 27 de abril de 2009

José

José nasceu.
Nasceu porque é um ser vivo que faz parte do Reino Animal. Nasceu como todos os bichos que existem. E humanos.
José não seria gente se não tivesse nascido.
Seria talvez alguma coisa invisível. Um ser fruto da imaginação de sua mãe. Seria qualquer coisa, menos um humano.
Ele era um ser estranho, com uma aparência exterior completamente fora dos padrões de beleza e com umas manias esquisitas. Era o excluído da sociedade. Mas ainda assim era um humano.
Muitos não se davam conta disso. Muitos esses que tinham a visão turva ou nula, provocada pelo véu do preconceito. Viam-no como um ser bizarro.
Mas aos sete anos, José já era um menino bom. Perdoava a todos que o achincalhavam, compreendia que esta deficiência da visão poderia ser pior que suas feições feias. Não ligava quando o chamavam de menino alienígena na rua e continuava a brincar, descendo de carrinho de rolimã ladeira abaixo. Continuava se divertindo. E era feliz.
José era o menino dos olhos de sua mãe. Mesmo feio e com comportamento estranho, ele era o filho que ela tanto desejara. E ela acreditava nas fantasias de José.
José tinha os pés voltados para trás. Assim como o Curupira. Ele acreditava que também era o protetor da floresta e pintou o cabelo de vermelho com papel crepom. Mas ele não era o Curupira; ele era o José, um ser humano que nasceu. Curupira não nasce, simplesmente existe, e o José nasceu.
Ia para a mata nas proximidades, ficava cerca de três, quatro horas tomando conta e voltava. Para brincar de carrinho de rolimã. Ou para comer as jabuticabas do pequeno pomar da sua casa.
Até que um dia ele foi e não voltou. Alguns dizem que ele encontrou o Curupira verdadeiro. Outros, que ele se tornou um. Outros ainda, que ele se tornou uma planta. A verdade ninguém sabe. Ninguém se interessa. Os cegos ficaram aliviados com o sumiço do ser bizarro. A mãe achava que José tinha virado santo das florestas e rezava para ele todos os dias.
Mas o mais provável é que José tenha morrido. Afinal, José era um humano. O ser humano é um ser vivo. E todo ser vivo morre um dia.
Se morreu ou não, não importa. Vivo ou morto, humano ou sobrenatural, José virou uma lenda.

Eu era uma menina

Eu era uma menina quando tudo aconteceu. Não tinha idade para entender o quão grave era aquilo. Mas sabia que o curso da minha vida mudaria para sempre.Sabia que não veria mais minha mãe. Chorei. Não pela dor da perda, até porque eu não compreendia isso. Chorei por me sentir indefesa. Afinal, é assustador para qualquer um ver uma poça de sangue, imagine para uma menina.
Eu estava dormindo, agarrada a um tigre de pelúcia quando ouvi um grito. Um grito de mulher. Senti medo. Cobri minha cabeça com a coberta. Ouvi outro grito, ainda mais medonho. Continuei debaixo da coberta e tapei os ouvidos. Não sei quanto tempo fiquei assim. Só sei que me pareceu uma eternidade.
Os gritos cessaram. Tudo ficou no mais completo silêncio. Não ouvia nada além do cochiar dos sapos lá fora.
Não dormi mais naquela noite. Quando o sol começava a despontar no horizonte, tomei coragem e me levantei.
Mas eu não sabia que o pior ainda estava por vir. Eu não sabia o que veria. Muito menos, que eu não aguentaria. Eu era uma menina!
Na minha inocência, a primeira coisa que pensei foi que tinham feito arte na sala com tinha vermelha. Até ver o corpo de minha mãe, caído no chão, inerte e inanimado. Foi então que entendi que o vermelho era sangue. Vomitei, horrorizada. Não sabia o que pensar. Não pensei. Apenas agi. Corri lá para fora. O sol estava nascendo e o orvalho da noite molhava meis pés descalços.
Fui encontrada horas depois à beira do riacho, jogando pedrinhas na água. Me levaram para casa, minha mãe não estava mais lá e o sangue também não.Minha avó me pegou no colo e me ninou. No dia seguinte, me levou consigo. Fui morar na cidade grande. Os sapos, os grilos, a grama molhada pelo orvalho da noite ficaram para trás.
Eu era uma menina que nunca tivera pai. Agora também não tinha uma mãe.
E eu era só uma menina.

©2007 '' Por Elke di Barros