quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Des-Foco-Nada

Nada fazia sentido. Nada estava ali. A imagem desfocada. Velocidade em foco. As coisas andavam rápido demais. E o mundo girava sem que ele se encontrasse. Ele não se encontrava. Estava perdido. Num monte de coisas. Num monte de nada. Certas coisas eram nada. Nada é nada. Simplesmente nada. Nada. Era ali que ele estava, mesmo sem saber. No meio do nada.
Imagem. Borrada. Era o que ele via. Borrões. Abstração. Lembrou dos artistas malucos. Sim, artistas que pintavam borrões eram malucos. E ainda chamavam aquilo de arte. Era a concepção que ele tinha da arte. Medieval. Arte bonita é arte figurativa. Assim pensava a cabeça dele que estava num meio abstrato. Kandinsky. Era o que a imagem à sua frente lembrava. Ou seria Miró? Ou Beatriz Milhazes? Não sabia.
As coisas iam correndo. Voando. E nada se via. Como um trem em movimento. Ou um carro participando de um pega.
Nada, nada. Tudo. Nada. O sentido era como um tubo de aspirador. Um monte de lixo. Quase tudo borrado e indefinível.
Ele foi embora. A pé. Pisando no emaranhado. Para onde ele foi? Não há como saber. Talvez tenha virado um borrão. Um desfoque.

domingo, 26 de setembro de 2010

Primavera no Cinema


Dias, meses e anos se passaram, sem que eu me desse conta que de as primaveras iam e vinham. Num piscar de olhos. Naquele dia, dez anos atrás, eu era uma menina de 14 anos. A enfrentar uma perda. Talvez a primeira grande perda da vida. Entendi a dimensão daquilo, mas a maior naturalidade já vista diante de uma morte estava ali. Talvez pelo um ano de certeza de que uma vida se esvaía. Talvez pela crença de uma vida além-túmulo. Pode ter sido estranho naquele momento. Mas a gente vai acostumando. Aos poucos. E nem percebe que se acostumou.

Na última primavera da década, do século e milênio passados, um ser fechou os olhos pela última vez. Não antes de dirigir as últimas palavras de amor a quem amava. Não antes deixar belas lembranças de uma infância feliz na mente de quem cá ficou. Não antes ter plantado a semente da honestidade. Não antes ter ensinado a filha a andar de bicicleta. Não antes de ter dado aulinhas de inglês em casa antes das provas.

Estamos diante de mais uma última primavera de uma década. E me dou conta que de o tempo passou. Dez anos. Redondos. Estranho. Não parece que passou tanto tempo assim. Algumas lembranças são atemporais e o tempo cronológico não acompanha. Me dei conta de que sou uma mulher. E que o ser que respirou pela última vez naquela primavera não conhece. Tudo mudou. O roteiro do filme agora é outro. Parece que mudou de autor. Os personagens que sobraram sofreram mutações no decorrer da história. Talvez o "ser-personagem" não se encaixasse mais como uma obra viva. É agora um personagem atuante nos sonhos, nas lembranças, nas saudades. Aparece em feed-back, em cenas bonitas.

A mensagem do filme é: No meio das flores "a saudade é a presença do ausente".

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Salomão

Cinquenta e três anos. Essa é a idade de Salomão, um pintor de parede. casado e com um filho adolescente, Salomão é um semi-analfabeto. Cursou até a primeira série primária na Paraíba, sua terra natal. Se mudou para o subúrbio do Rio de Janeiro com doze anos, onde continuou a ajudar o pai na tarefa rotineira de pintar paredes.
A vida inteira Salomão fez a mesma coisa. Mudava as casas, as cores, mas o serviço era sempre o mesmo. Porém, ele não se importa. Gosta do que faz. Acha gratificante pegar um cômodo feio e transformá-lo em algo novo, e muitas vezes, até em algo com estilo. É bom também ver o sorriso do cliente, com a casa ou local de trabalho renovados.
O dinheiro é pouco, mas dá para pagar todas as continhas, Nada lhe sobra, mas também não falta. Problemas com clientes? Acontecem. Mas isso é café pequeno. Problema, para Salomão, quem os tem é quem sente fome e não tem um teto a abrigar. Assim, o pintor é privilegiado. Tem casa, comida e roupas novas quando precisa.
Sente saudade da Paraíba, mas não muito. Faz tempo que saiu de lá e nunca mais voltou. E as pessoas que lhe eram preciosas - os pais, os irmãos e a avó - foram todas para o Rio de Janeiro com ele. O nordeste ficava agora num passado distante. Bonito, memorável, porque foi lá que passou a infância e os anos de brincadeiras inocentes, mas distante.
Hoje acordou cedo, como todos os dias. Tomou café da manhã reforçado. Café com leite, pão-tatu, ovo mexido, torrada com geleia. Pegou uma combi e foi trabalhar. Era o último dia no apartamento do Leme.
Ao entardecer, concluiu o serviço com fone de Mp3 ainda pendurado nos ouvidos. Sorriu. Mais uma missão cumprida. Mais um dia vivido.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Madá, a artista

Maria Madalena. Esse é meu nome. Alguns me chamam de Madá. Apenas Madá. Prefiro assim, aliás. É o jeito de não correr o risco de me reportarem à Bíblia e não ouvir piadinhas sem graça.
Sou hippie. Ou queria ser. Não sei se é possível ser hippie hoje em dia. Não existem mais as aldeias dos anos 60 e 70. O mundo ficou liberal e o jovem, conservador. Contraditória essa afirmação, mas verdadeira. Posso apenas dizer que minha indumentaria é hippie, que acendo incenso e acredito nas fases da lua. Tomo suco de clorofila pela manhã, sou vegan, uso brincos compridos e minha casa é cheia de samambaias e chifres-de-veado. E procuro viver. Viver, de verdade, no sentido amplo da palavra.
Existir é muito simples. Nasceu, tem um coração batendo, existe. Existir, todos o sabem. Mas e viver, quem o sabe? A vida é a consciência do Carpe Diem. Saber aproveitar cada momento, sentir-se você mesmo, sentir o sangue pulsar nas veias de emoção, apreciar as pequenas coisas, ter tempo para você mesmo. Eu sei fazer isso. O que não quer dizer que consiga sempre.
Esse ano ainda não vivi. Estamos em agosto e até agora o ano passou por mim, simplesmente. Não sei quando foi maio. Nada marcou. Não toquei meu violão, não pintei um quadrinho, não fiz um desenho, quase não vi filmes interessantes com uma tigela de pipocas amanteigadas nas mãos. Não apreciei o sol, tampouco a lua. Não ouvi o barulho do mar, mesmo morando na costa. Não vi crianças brincando no parquinho, correndo esbaforidas. Não cresci com minhas plantinhas.
Perdi esses meses todos. Perdi existindo, apenas. Dormia, acordava, trabalhava, dormia. Tudo rotineiro e entendiante.
Está na hora de mudar tudo. Voltar a ser a Madá. Madá, a artista. Aquela que vive de arte e da arte. Voltar a pintar para magnatas exporem em suas paredes luxuosas no Alto Leblon. Voltar a tocar violão nos botequins de Copacabana. Voltar a escrever para alguma editora. Sim, não sou artista de uma arte só. Voltarei a dar aulas de yoga. Voltarei a ficar zen.
Agora sim, sou a Madá de novo.

Depoimento de uma personagem: Maria Madalena, agosto 2010.

©2007 '' Por Elke di Barros