terça-feira, 22 de junho de 2010

Pseudo-Código

A - Estou cansado.
B - É?
A - É!
B - Cansado de que?
A - Disso.
B - Disso o que?
A - Disso. Só disso.
B - Sou obrigado a adivinhar o que é disso?
A - Ah, achei que soubesse.
B - Tenho cara de adivinho?
A - Não. Você tem a cara que a mistura do espermatozóide com o óvulo te deu.
B - Então?!
A - Achei que você era meu amigo.
B - E não sou?
A - Amigos se entendem.
B - E nós não nos entendemos?
A - Pelo jeito, não.
B - De onde você tirou isso?
A - Amigos não precisam de palavras.
B - Ah, não?
A - Não.
B - Precisam de que então?
A - Sintonia.
B - Sintonia é telepatia então?
A - Não.
B - É o que?
A - Sintonia. Apenas sintonia.
B - Desisto.
A - Desiste?
B - Desisto!
A - De mim?
B - Não.
A - De que?
B - De entender seu papo.
A - Ah, você não me entende.
B - Não, não entendo.
A - Achei que você fosse bom em interpretação de códigos.
B - Isso não é código.
A - Como não?
B - Não sendo.
A - Claro que é.
B - Pode ser uma tentativa. Mas não é propriamente um código.
A - Ah, ãhn.
B - Hum.

domingo, 13 de junho de 2010

Há 25 anos

Quando Otávio era criança, brincava de soltar pipa no telhado da avó. De bonzinho, não tinha nada. Passava cerol na pipa dos vizinhos. Era esperto. Sabia que deixava os meninos da vizinhança roxos de raiva. Mas ninguém se atreveria a mexer com o neto de d. Albertina.
A velha senhora era a benfeitora do bairro. Aquela que distribuía balinhas para as crianças e dava um pouco do seu arroz com feijão para quem tivesse fome. Como dar o troco no neto dela? É. O pequeno Otávio se aproveitava disso. Esperto que era. Ou burro?
Esqueceu-se ou não sabia que as pessoas têm limite. E de um dia para outro, num piscar de olhos, deixou de ser o queridinho da vovó.
Um fofoqueiro acabou com a festa.
- Otávio - a voz era dura - venha cá. Já!
O menino gelou. Sua avó nunca lhe dirigira assim. Teve o típico medo infantil. Correu para a cozinha.
- Vovó.
- Senta. - Ele obedeceu. - Muito bem. Pois pode começar.
- Começar o quê?
- A explicar.
- Explicar o que?
- O que você faz quando vem na minha casa?
- Visito a senhora, como seu bolo de cenoura, tomo banho, ouço suas historinhas, jogo dominó com Papolete, vejo TV.
- Para começar, esqueça Papolete. Ele não existe.
- Existe vovó. Eu vejo.
- Não se pode ver amigos imaginários, Otávio. Acho que você se esqueceu de uma coisa.
- O que?
- Você não solta pipa quando vem aqui?
- Ah, sim. Solto.
- O que mais?
-Nada.
- Tem certeza?
Otávio fez sim com a cabeça, olhos visivelmente assustados.
- E o cerol na pipa dos vizinhos?

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Vinte e cinco anos se passaram. Otávio não consegue se lembrar com precisão os detalhes que se seguiram à pergunta fatal da avó. Lembrava-se apenas do susto que o dominou.
Na época foi aterrorizante, Mas hoje era uma lembrança engraçada. Tinha vontade de rir de si mesmo, pelo quão idiota fora. E ria. Hoje era noite de autógrafo do seu livro. Eu e as pipas do vizinho.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Presente

Andava pela rua e não via ninguém. Apenas o negrume da escuridão. A coruja não lhe fazia companhia. Nem os morcegos. Nem as estrelas, com quem costuma conversar. Ninguém. A lua? Ela também não estava lá.
Ele não sabia para onde ia. Nem onde estava. Não tinha como se orientar. Não havia placas. Mesmo que houvesse, como lê-las? Não tinha uma lanterna em mãos. Não via os possíveis caminhos a tomar. Andava, andava, sem se dar conta de que estava perdido.
Estava sozinho, completamente só. Não havia cor ali, a acompanhá-lo. O preto dominava. Igual a gene dominante de letra maiúscula.
Pisava no chão duro, sem folhas a farfalhar. O único som eram seus passos e sua respiração.
Começou a correr. Voar. Tinha pressa de chegar. Chegar aonde? Em algum lugar, no futuro.
Mas de que adiantará o futuro se esqueceu o livrinho de colorir e o lápis de cor no presente?

©2007 '' Por Elke di Barros