sábado, 19 de dezembro de 2009

Yin Yang; Sol e Chuva

João Carlos ou Joca. Algumas pessoas o chamam do primeiro jeito, outras, do segundo. Mas não faz diferença. Ele atende a ambos os chamados.
Joca era um menino. De nove anos. Morador de uma metrópole litorânea. Foi vendo o mar que tomou uma decisão para toda vida. Seria um escritor.
Naquele dia, quando chegou da praia, informou à mãe a decisão. Ela achou graça. Riu. Crianças vivem tomando decisões para vida toda a cada quarenta minutos.
Mas Silvana enganou-se. Redondamente. Joca cresceu. Tem agora trinta e dois anos. E se sustenta com a escrita. Tem uma coluna de crônicas numa revista eletrônica. E publica livros. Um por ano, em média. Ora é ficção, ora crônicas. Às vezes vende muito, outras nem tanto.
Silvana lamenta. Tem um pensamento diferente. Por demais conservador, digamos. É daquelas que pensam que escrever é o mesmo que vagabundear. Tinha que ter dado ouvidos ao Joca de nove anos, ao Joca criança da Copacabana dos anos 80. Talvez hoje ele tivesse alguma profissão. Sim, porque escritor não é profissão. É apenas um nome bonito para quem não faz bosta nenhuma e passa o tempo rabiscando letras em papéis avulsos ou em cadernos, que seja. Um filho escritor, que ideia! De nada adianta os argumentos de Joca, citando escritores importantes da literatura brasileira. É tudo um bando de vagabundo, Machado, Fonseca, Lobato, e todos os demais - Silvana sempre retruca. Ela queria um filho médico. Ou advogado Ou engenheiro. Ou até mesmo professor universitário. Enfim, qualquer profissão respeitável.
Até que Joca desistiu. É perda de tempo. Não vai abrir mão do que o realiza em detrimento da mente pequena da mãe. Ela o considera um vagabundo? Dane-se. Pelo menos consegue pagar suas contas sozinho.
Manda convite de todas as noites de autógrafos para a mãe. Nem sempre ela comparece. Paciência. Joca aprendeu a lidar com isso.
Se dói? Dói. Mas Joca sabe dar valor ao que tem. Ele ainda tem os almoços de todo domingo na casa dos pais. Ainda vê o pai toda santa semana no apartamento de Copacabana. E este, já senhor, aprendeu a mexer no computador para ler as crônicas do filho. Vai a todos os eventos, lê e relê todos os livros. Típico pai coruja. Orgulhoso do ser que pôs no mundo. Do ser que criou.
Numa tarde de sol, em dezembro, Joca saiu do banho frio. Tinha refletido sobre os pais. Quanto contraste! E aí saiu uma crônica. Talvez a mais polêmica de sua carreira. Yin Yang; Sol e Chuva.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Suco de laranja

Som de vento batendo com força nas janelas. Quatro pratos de macarronada com molho ralo sobre a mesa. Também sobre a mesa, três copos com suco de laranja e um com água. Quatro cadeiras, quatro pessoas.
Silêncio completo. Rezavam. Agradeciam sei lá a quem. Talvez a Deus, ou a Jeová, ou a Alá, a Virgem Maria, aos Mestres Ascencionados, a Buda, aos Anjos, a Jesus? Não sei a religião deles, se é que tinham alguma definida. Mas isso não faz diferença. O fato é que rezavam. Fato relevante, já que era uma das poucas vezes que tinham o luxo de comer macarronada com suco de laranja.
Finda a prece, puseram-se a saborear a comida e a conversar alegremente. Eram pobres, gente de pouco cultura e palavreado ralo, mas tinham alegria de viver. Precisavam de pouco para serem felizes. os três.
Três ou quatro - você deve estar se perguntando. Três - respondo. Reparou que são apenas três copos de suco de laranja? Pois é. Sempre há uma ovelha negra numa família.
O ser do copo d´água era diferente dos outros membros da família. Não só pelo fato de estar bebendo água. A água em si é, na verdade, um pequeno detalhe. Ele não precisava de pouco. Queria mais. Sempre mais. Preferiu o copo d´água porque laranjada com apenas uma laranja não lhe era suficiente. Isso mesmo. Três copos com apenas uma laranja. Muito aguado, eu sei, mas era o que eles podiam ter. Mas o ser não queria saber de nada disso. Para tomar suco de laranja, tinha que ser um de verdade. Com duas laranjas para um copo.
Também não rezava. Isso, os pais não tinham como saber. Afinal, orações são feitas em silêncio. E o ser ficava em silêncio, como mandava o figurino. Às vezes, a revolta o corroía. Outras vezes, pensava em alguma coisa indefinível.
Alimentava a revolta dentro de si. Sentia a raiva pulsar-lhe nas veias quando o pai ou qualquer outro alguém dizia que a vida era uma dádiva. Para os ricos talvez fosse, pensava.
Pobre indivíduo. Pobre de espírito. Ao reclamar para si do macarrão com molho ralo, esquece-se de que mora no campo, diante de tanto verde, do céu sempre azul nos dias de sol. Não lembra de ouvir o cantar dos passarinhos e das cigarras. Não lembra de jogar pedrinhas no rio.
E a felicidade, para ele é que nem suco de laranja aguado, se tenta-se pegá-lo com as mãos: escorre-lhe pelos dedos.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Fabuloso Destino

Às vezes eu tenho medo de mim. Das particularidades que me envolvem. Das minhas bizarrices. Sou idiossincrática. Às vezes querendo, às vezes sem querer. E não sei dizer se é bom ou ruim. Mas na maioria das vezes fico feliz. Sou uma Amélie Poulain com outro nome. Só não sei se tenho um destino fabuloso. Talvez tenha. Se Amélie teve, eu devo ter também.
Numa sexta feira treze eu tive um sonho deveras esquisito. Mas que me deu a impressão que ia acontecer algo ainda naquele mês. Só não sabia que seria naquele mesmo dia, tão rápido assim. Também não sabia o que exatamente aconteceria. Para falar a verdade, eu não sabia de quase nada. Apenas sabia que aconteceria algo ainda no mês de novembro que já estava pela metade. Restava ainda mais uma metade pra tal coisa acontecer. Não queridos, não vi um gato preto cruzar a esquina. Também não vi uma bruxa com uma verruga no nariz. Não vi vassouras voando ao céu. Não escorreguei numa casca de banana. Não derramaram água suja em mim por engano. Peraí. Quem foi que disse que sexta-feira treze tem que ser dia de azar? Aquele dito popular idiota? Bobagem. Para mim é dia de sorte, ou pelo menos foi.
Vale lembrar que sou diferente de todo mundo. Para as pessoas comuns pode ser dia de azar. Para mim não. E graças a isso conheci gente nova. Ok, mas você não conhece gente nova volta e meia? - você pergunta. Sim – eu respondo – mas não dessa maneira. Conheci gente nova de outros estados, que compartilha de parte da minha idiossincrasia. Pessoas com as quais tive afinidade (quase) instantânea. Pessoas de quem gostei muito, e eu sei, que gostaram de mim também. Se você tem um bom português, há de ter entendido que não conheci gente nova apenas. Fiz amigos. De verdade. Que talvez sejam para a vida toda. Se não forem, ao menos estão fazendo o presente especial, e não apenas um presente. Um presente para se tornar um passado memorável, gostoso de se lembrar.
Pessoas que me fizeram lembrar de “carpediar”. Ok, eu sei que essa palavra não existe. Mas creio que todo mundo saiba o que é Carpe Diem, e tenha capacidade suficiente para decifrar o neologismo, que não é de minha autoria, ressalto.
Eu queria agradecer. A quem? Não sei bem. Às pessoas? Ao meu sonho? Ou a Deus talvez? A mim mesma por não deixar passar as oportunidades? Não sei bem.
Olho para o céu, admiro as estrelas da noite. E sorrio por ter um destino fabuloso no rio da amizade.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Tabela

Divisão.
Etapas.
Momentos.
Categorias.
A vida assim é.
Dividida
em etapas,
em momentos,
em categorias.
Cada divisão
tem um espaço em branco
numa tabela.
Pouco a pouco
perde o branco,
ganha cores.
As cores da vida.
Quando preenchido
o quadrado,
acaba-se
a etapa,
o momento,
ou a categoria.
Às vezes
vê- se a luz de uma festa
de início
ou de fim.
Outras,
simplesmente
pula-se um quadrado
e pinta-semais um pouco a tabela
da vida.
E assim vamos
preenchendo, preenchendo,
pintando, pintando.
Haja lápis de cor!
(Ou não).

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Esperai por mim

Liberdade,
esperai por mim!
Liberdade,
venha cá,
para as proximidades do meu ser.
Encontrar-me-ei contigo.
Mas está difícil encontrar um caminho.
Há desventuras que atrapalham,
pedras que me fazem tropeçar.
De tanto cair e levantar,
demoro mais a chegar perto de ti.
Mas ainda chegarei,
esperai por mim!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Tela Branca

Eu queria ver um filme. De circuito alternativo. Daqueles que quase ninguém quer ver. O que eu fiz? Mandei a vontade dos outros se danar! Não preciso de companhia para ir ao cinema, ora essa! Preciso apenas de um tostão, documento que comprove que tenho direito a meia entrada. Só!
E assim eu fui ao cinema. Sozinho. O filme? Desinteressante para a maioria das pessoas é o suficiente. Estava bem simples. Calça jeans, all star vermelho, camisa branca e a mochila verde-musgo habitual.
Cheguei cedo. Sentei-me confortavelmente na poltrona, com as pernas esticadas, pouco ou nada preocupado com as boas maneiras.
Comecei então a olhar ao meu redor. Tentava me distrair com as pessoas que iam chegando, enquanto o filme não começava. Contudo, quem foi que disse que eu conseguia? O máximo que consegui descobrir é que eu não sou o único que vai ao cinema sozinho. Faço parte de uma turma, ainda que pequena.
Minha mente era um rebuliço só. Olhava para a tela branca e via imagens. Bizarras. Macabras. Tenebrosas. O mundo parecia estar acabando. O meu mundo. O meu Apocalipse. As imagens eram indefinidas, mas eu via bem a natureza destas. E sabia o significado de cada uma daquelas pequenas coisas indecifráveis. Elas tinha uma ligação quase que psíquica com minha mente. Era minha mente falando. Falando, não. Não estava usando minhas cordas vocais. Dizendo. É. Era minha mente dizendo. Tudo de ruim que ela tinha e pensava.
Aquilo daria um péssimo filme. Não serviria para circuito alternativo e muito menos, comercial. Talvez para alguma obra de arte a la Kandinsky, Miró e Malevich. Afinal somos todos indefiníveis.
Stop. Apaguei minha imagem. A tela voltou a ficar branca.
Virei para o lado. Havia um cara com o olhar vidrado à sua frente. Devia estar vendo seu próprio filme também. Mas a expressão era péssima. De medo. E desgosto.
Torci para que o filme de verdade fosse melhor que os das nossas mentes.
Olhei para o relógio. Fazia apenas cinco minutos que eu estava sentado ali. As luzes ainda estavam acesas.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Imagens no ônibus

Quarenta e oito. Um número par. Vinte e quatro de um lado, vinte e quatro de outro. Doze fileiras. Quatro colunas. Entre um lado e outro, um corredor. Nas colunas extremas, presença de janelas.
A vista? Depende. Do lugar, do caminho e da hora. Se é dia ou noite. E do que se quer ver. Cada olho é um olho e cada mente é uma mente. Respeitemos.
Alice estava num assento da coluna à extrema direita. Tinha um janelão para si. Encontrava-se dentro de um ônibus interestadual que percorria a estrada rumo à cidade onde visitaria sua avó.
Um MP4 ligado baixinho a distraía junto à janela. Via as imagens borradas do impressionismo, a impressão que ela tinha era única e pessoal. Transmitiria a imagem concreta e seu interior abstrato para uma tela, pensou.
Alice era uma artista plástica, tinha como suporte favorito a tela, variando muito as técnicas. Tinha uma influência muito forte do surrealismo de Salvador Dalí.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Influência do clima

Eu estava ali, quieta no meu canto. Sem falar, sem manifestar-me, embora tivesse vontade. Estava sentada numa das cadeiras à extrema esquerda da sala. Eu podia estar parada, mas meus olhos passeavam. E meu coração também.
Conhece o resultado dessa adição? Perspicácia. Os olhos dão os fatos. O coração, a intuição.
O evento estava bom. Um evento cultural literário. Textos bons. Pessoas ávidas por mais conhecimentos. Bons leitores.
Mas o todo não se resume a isso. Muito menos para um observador. De pessoas. Havia algo estranho no ar. Alguns indivíduos naquela sala sentiam um certo desconforto. Percebi nos pequenos detalhes, nas entrelinhas. Desde o primeiro instante.
Continuei na minha, a observar. Meu cérebro trabalhava. Eu estava a imaginar o que se passava pela cabeça de cada uma daquelas pessoas. E como elas reagiriam ao final de tudo aquilo. A única coisa que eu sabia é que algo sairia errado para alguém.
Por alguns instantes, desliguei-me dos seres humanos ali presentes. Comecei a prestar atenção na arte que transcorria. Ouvi narrarem um conto. Muito bem narrado, aliás. Palmas. Abri minha bolsa, pequei um casaco para proteger-me do ar condicionado. Um poema. Palmas. Olhei bem para o cenário adiante e notei como era bonitinho, bem decorado. Outro conto. Palmas. Voltei a pensar nas pessoas. O tempo estava andando. Mais um conto. Palmas. Era o final do evento. Mais palmas. Alguns comentários. Era hora de recomeçar a me focar nas pessoas com mais cuidado. Palmas. Acabou.
Todos levantaram-se das cadeiras, do chão, ou de qualquer outro lugar que tenha servido de assento para a bunda. Alguns vão em direção à porta - uma parte com calma, a outra, com pressa, ávida por uma baforada de ar quente. Outros dirigem-se a outras pessoas. Tem muito outro nesse parágrafo. Licença literária, dá licença. Prosseguindo. Querem interagir, de alguma forma. Com ou sem razão específica.
Mas não havia clima. Os ansiosos por calor humano foram obrigados a desistir.
O evento foi bom. Mas ao final, todos tiveram que caminhar porta afora. Sem uma palavra.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Parede

Eu sou uma parede.
Não lembram que eu existo.
Não olham para mim.
Não conversam comigo.
Só porque mostrei uma das minhas facetas.
Só porque disse o que vinha no fundo de minh´alma.
Não sou mais uma pessoa.
Não olham para mim.
Não conversam comigo.
Eu sou uma parede.

domingo, 6 de setembro de 2009

Detalhes

A cortina do quarto é uma veneziana horizontal lilás. Encontra-se suspensa. A claridade acinzentada da manhã entra pela janela revelando um dia feio. Feio? Não necessariamente. Dias nublados e com cara de chuva podem ter sua beleza singular e idiossincrática.
Uma foto daquele quarto não serviria para ilustrar páginas de revista. Lençóis, edredom embaralhados na cama. Dois travesseiros também embaralhados na cama e um terceiro caído no chão. Criado-mudo com pelo menos duas dezenas de livros empilhados. Uma verdadeira mistura de títulos, autores assuntos: de Shakespeare a Freud, De Fernando Morais a Tólstoi, de Eragon a Dom Casmurro. Pequena escrivaninha com montanhas de papéis rabiscados, amassados, rasgados, mais lápis, borracha, caneta. Eram rascunhos, resumos, escritos do dia anterior. Na cadeira, uma calça jeans e uma regata verde-esmeralda. Tênis embaixo da cama. Caneca d´água ao lado da pilha de livros. Almofada redonda e vermelha no canto com um gato amarelo sentado em cima.
Barulho de torneira. Cessa. barulho de descarga. Cessa. Barulho de chuveiro por uns dez minutos. Cessa.
Passos se aproximando. A personagem entra no quarto. Pega as roupas sobre a cadeira e veste-se, jogando a toalha molhada na cama. Nem encosta nos tênis à sua vista. Abre o armário. Pega um chinelo de borracha. Rosa-choque. Quem foi que disse que a personagem se preocupa em combinar cores? Idiossincrasia. Combinar cores é coisa de gente comum. Abre uma gaveta e pega uma bolsa laranja. Dentro, enfia o lápis, a borracha, os escritos e alguns papéis em branco.
Passos se afastando. A personagem está saindo do quarto.
A cozinha. Pão de forma integral em cima da mesa. Queijo minas e geléia de amora na geladeira. A personagem faz um sanduíche. Enche um copo com leite. Puro. Toma seu café da manhã.
O dia está apenas começando.

domingo, 30 de agosto de 2009

Imaginar X Querer


O globo rodopiava. Girava. Não importa o termo. Luís fingia que era o sol. Ora uma parte era dia e outra noite, ora vice-versa.
Ele gostava de entrar na biblioteca do pai para fazer isso: rodar o globo terrestre e transformar o cômodo num universo. Pequenos objetos poderiam ser as estrelas. Na sua imaginação, ficava ali, irradiando luz sem cessar, iluminando o planeta.
À vezes ficava horas a fazê-lo, a imaginar-se um foco de luz, a rodar o globo redondo.
Os pais não o compreendiam. Achavam que ele seria astronauta quando adulto. Ou um astrônomo. Imaginavam que o filho gostava (ou gostaria) de estudar o universo.
Mas Luís não pensava em nada disso. Nas brincadeiras, o foco era ele próprio. Era a luz que fingia emanar à Terra, aos outros planetas do sistema solar e à lua.
Luís só imaginava a lua cheia, bem iluminada. No seu mundo não existia lua nova, nem crescente, nem minguante.
Ele gostava de luz. Não era a toa que preferia o dia a noite. Dentre as noites, preferia as de lua cheia que eram mais claras e brilhosas.
A luz elétrica não o interessava. Gostava das luzes naturais. Do sol. Do vaga-lume. Enfim, daquilo que era proveniente da natureza.
Luís tinha cinco anos. E sabia que queria ser Deus.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Saber

A porta estava aberta quando eu cheguei naquela casa. Mesmo assim, bati palmas - ali não havia campainha. Ninguém respondeu. Bati palmas mais uma vez. Nada. Usei a voz:
- Ó de casa.
Nada.
- Ó de casa.
Nada de novo.
- Ó de casa.
Nenhuma resposta.
Resolvi entrar.
O interior exalava um odor fétido, oriundo da alta umidade, supus. A aparência era de um lugar abandonado, cheio de poeira e teias de aranha, mas havia um senhor sentado numa cadeira de balanço com o encosto de palhas soltando. Ele usava um chapéu, também de palha, e fumava um cachimbo. Ou seria um charuto? A semi-escuridão do ambiente não me permitia ter certeza. Concluí que devia ser um cachimbo, a meu ver, combinava mais com o aspecto do homem.
- Com licença, senhor...
- A porta está aberta. Isso significa que a casa está de portas abertas, não? - interrompeu-me; fiquei até encabulada.
- S...sim. Mas creio que seja mais educado bater à porta.
- Às favas com a educação!
Que senhorzinho estranho, pensei. Ele se calava do nada, falava coisas inusitadas, mas também não perdia tempo.
- Senhorita, se veio até aqui, suponho que tenha algo a dizer ou fazer, Tem um banco à sua frente. Pode se sentar.
Pela tênue claridade da vela, pude ver que o banco estava empoeirado. Mas recusar-me a sentar seria uma ofensa ao senhor e eu não poderia seguir o "conselho" dele de ignorar a educação. Não devia era ter vindo de calça branca. Mas era tarde demais para pensar no que devia ou não. Eu estava de calça branca e tinha que sentar num banco imundo, isso era um fato. Puxei o banco e sentei-me.
Sentada, pude observar melhor o rosto daquele senhor. Ele tinha uma expressão fisionômica bastante fechada e ao mesmo tempo, serena. Constatei que ele fumava era um cachimbo.
- E então? O que a trouxe aqui.
Olhei fundo nos olhos daquele senhor. Foi então que percebi que tinha apenas uma resposta a dar.
- Não sei.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Olhar

As árvores pela janela
eu olho.
Vejo, olho,
as duas coisas.
Ver
Olhar
Sentir
Captar
Processar
Processar o olhar,
a imagem.
O mar no horizonte
eu olho
Sinto
Capto
Vivo.
O céu alaranjado ao topo
eu olho
Capto
Vejo e olho
As duas coisas.
A vida a mim vem
na imensidão
e nas pequenas coisas.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Rasgados

Rasgado.
Rasgados, no plural.
Muitos rasgados. E tão próximos.
Meu lençol está assim.
Em péssimas condições.
Há condições de remendá-lo? – pergunto eu.
Difícil, difícil.
Mas não há como jogá-lo fora.
É um órgão vital meu.
Será possível arrancá-lo do fundo?
Afastá-lo da escuridão do lençol freático
E trazê-lo à luz da superfície?
Deve haver um jeito, um caminho, uma mágica.
Sim. Há.
O tempo.

domingo, 5 de julho de 2009

Reflexão de um estranho

Eu nasci num lugar estranho, num tempo estranho. Isso é o que dizem, os convencionais.
E eu me pergunto se existem mesmo lugares estranhos. Não estou tão certo se o termo estranho deveria existir. O que é estranho? Será que o estranho é estranho mesmo ou é apenas diferente?
Será que sou um estranho? Ou apenas nasci num lugar diferente e tenho um comportamento atípico?
Não, eu não sou um estranho! Apenas não sou igual a todo mundo. Eu sou eu. Sou único, uma individualidade. Todas as pessoas são uma produção industrial em série. Em alguns casos talvez, uma produção artesanal. Eu não. Sou obra de um artista! E obra de artista é obra única; sou daquelas datadas e assinadas. Assinada pela minha mãe.
Quer ver alguém chamar a obra de um artista plástico de estranha. Não chamam. E a obra é sempre única.
Assim como as obras de arte, eu devia ser admirado, não? Admirado por ter a minha individualidade, e ser o único no mercado, irreproduzível.
Quando eu vivia na comunidade em que nasci, ninguém me chamava de estranho. Eles aceitavam o diferente, o atípico. Eles também eram diferentes. Mas diferentes sem serem iguais entre si. Eles também eram obras de arte. Obras de um tempo estranho de pessoas estranhas como falam.
Vivíamos numa barraca e éramos felizes.
Cantávamos e dançávamos ao redor da fogueira e éramos felizes.
Jogávamos pedrinhas no rio e éramos felizes.
Andávamos coloridos e éramos felizes.
Nós éramos felizes!
E porque sou um estranho? Aprendi a ser feliz. Ser feliz é ser estranho? Não!
Eu não sou estranho! Sou apenas uma obra de arte datada e assinada.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Portas e Caminhos




A vida é que nem o mundo. Cheia de caminhos. Sejam as estradas de terra ou asfalto, as trilhas, o curso do rio, a rota marítima ou aérea. É tudo um caminho.
Caminho é aquilo que desemboca em algum lugar. Aquilo que tem um(a) final(idade). A maioria é opcional. O percurso pode ser curto ou longo. Liso ou espinhento. Com ou sem pedras. Podem dar nos mesmos lugares ou não.
Algumas portas se abrem em determinado momento. Ao mesmo tempo.
E agora, José?
José não pode fazer nada. Cabe a cada um escolher uma das portas e trilhar o caminho.
Mas como escolhê-la?
Usar o coração, os sonhos, os desejos. Mas o caminho que o coração escolhe às vezes é o mais difícil, o que tem mais pedras no caminho. Às vezes tem até muros!
Muitas vezes, escolhe-se o caminho mais fácil. A alegria pode ser imediata. Mas a glória não triunfará. E a vitória não virá!
Sigamos nossos sonhos. Podemos ser tão grandes e tão altos quanto eles.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O observar

O vidro à sua frente está molhado. O ao lado também. Está chovendo forte e o trânsito está parado.
Enquanto o carro anda em ritmo tartaruga, ele reflete sobre o dia que se passou.
Tem um cigarro acesso, ora nos lábios, ora entre os dedos. O vício do tabaco é um hábito nocivo que o acompanha há algum tempo. desde que começou a se procupar demais e a não deixar a vida fluir. A fumaça lhe é envolvente, mas também deixa seus dentes amarelos e sia boca com um hálito fétido.
Bate a mão de leve no volante, num visível sinal de impaciência e ansiedade. Quer chegar em casa o quanto antes, tomar um copo de conhaque para afugentar os pensamentos que o dominam. Como se o álcool fosse resolver seus problemas. Não resolve. Mas ele acha mais fácil mergulhar num mundo de ilusões.
Ele não chega em casa nunca. Mora num bairro nobre, mas afastado do centro e o trânsito continua parado. A impaciência cresce a cada instante. Tem vontade de sair do carro e berrar todos os palavrões que lhe vêem à mente, mas não o faz.
A chuva aumenta e os pingos grossos batem no seu carro com mais violência.
Desanimado, olha para o lado e começa a observar as pessoas dos veículos vizinhos, como uma forma de passar o tempo. Descobre que a maioria parece indiferente ao trânsito. Uns berram ao celular na tentativa de abafar o som da chuva, outros olham o mundo de carros à sua frente, outros ainda, em carros populosos conversam entre si e dão gargalhadas, talvez estejam contando piadas ou simplesmente lembrando fatos engraçados. Se dá conta de que talvez seja o único verdadeiramente melancólico naquele quilômetro quadrado.
Liga o rádio num canal de música. Está tocando funk, estilo que não lhe agrada. Muda para um canal de notícias. Ouve uma voz de jornalista. E então entende o porque do trânsito estar parado.
percebe que ainda vai demorar muito para chegar em casa. O infeliz continua ali, a tragar o cigarro, a bater no volante e a observar as pessoas. E nem se dá conta do barulho da chuva.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Festa?

Quando a luz acaba,
acaba-se o mundo,
acaba-se o interior,
acaba-se o preenchimento.
Chega a escuridão,
chega o vácuo,
chega o exterior ou o nada,
chega o vazio.
O sorriso se apaga.
O brilho se apaga.
A vivacidez se apaga.
A sombriedade se acende.
O apaco se acende.
A mortalidade se acende.
Tudo isso é a festa da dor.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Último dia

Vento forte, pingos grossos. Ela olhava a chuva através da janela de seu pequeno apartamento. Olhava, mas não via. Seu pensamento estava muito longe para se dar conta da beleza do aguaceiro que caía do céu.
E ela também era do tipo que não percebia a beleza da natureza, ela não conhecia o carpe diem. Era do tipo de pessoa que existia ao invés de viver. Raros eram os momentos em que se permitia viver o presente. Raríssimos.
Naquele momento, ela pensava no trabalho. Aliás, sua vida se resumia a isso: às coisas práticas como acordar, levantar, comer, tomar banho, trabalhar, pagar as contas, dormir. E assim ela seguia sua vida rotineira e robótica.
Tudo era o prático. Não havia espaço para o sentimento. Talvez até houvesse, mas ela havia fechado as portas para aquilo que não fosse tão objetivo.
Os dias iam passando. Um após outro. Todos iguais. E ela não se cansava. Para falar a verdade, até gostava da monotonia, sentia-se confortável assim. Afinal, existir era mais fácil que viver.
Aquele dia era um domingo. Seu dia de folga e o mais temido da semana. Era o dia de fugir da rotina, coisa que ela não sabia fazer. Geralmente visitava os parentes apáticos num bairro distante. Mas em dia de chuva lá enchia, e ela tinha que ficar em casa. Não, não tinha. Ela podia sair, ir ao cinema que ficava a uma quadra do apartamento. Mas ela escolhia a clausura. E olhava a janela, sem nada ver. Se passasse um beija-flor como acontecia de vez em quando, ela nem notaria. À sua frente, em vez do vento forte e dos pingos grossos, ela via as imagens do seu dia-a-dia. A imagem do óbvio, da rotina.
Ela era um robô. Parecia programada para ver apenas a rotina.
E assim ela morreu. O coração parou quando ela estava debruçada na janela, pensando na vida robótica. O vento estava forte e a chuva caía em pingos grossos.

domingo, 17 de maio de 2009

Oco

O oco
da árvore.
O oco
do coco.
O oco
da colméia.
O oco,
o vazio,
o oco.
O espaço
interno.
O oco
da alma.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Cor


As cores.
As cores do mundo. As cores compõem o mundo e as coisas que fazem parte dele.
Catarina pensava nisso. Nas cores. Ela tinha a pele branca, o cabelo preto e os olhos cinza. Como numa imagem em preto e branco, mas ainda assim, eram cores. Talvez uma cor sem cor, mas não deixavam de ser cores.
Para quebrar o preto e branco havia um detalhe em sua roupa. A calça era preta, o tênis e a camiseta eram brancos. Mas ela usava um colar. Vermelho.
Essa imagem de Catarina tinha fundo. Desfocado, priorizando a figura humana, mas não deixava de ser um fundo. Tinha cores da escala cinza dos prédios antigos e abandonados, mas tinha também casas coloridas em azul-índigo ou amarelo-gema.
A imagem ao fundo alegrava as cores sem vida de Catarina.
As cores eram o sentido daquela foto. Elas tinham um significado no contexto e por si só. E a figura de Catarina sozinha não dizia nada.
O sentido é a cor.
O palpável é a cor.
O significado é a cor.
A lógica é a cor.
A razão é a cor.
O sentimento é a cor.
A cor é tudo. E tudo é cor.
E Catarina sabia disso. Não é de se espantar que só tirasse fotos onde houvesse um fundo que tivesse a cor que continha o significado que ela queria.
Ao olhar pela janela, ela sabia o que a vista lá fora queria dizer. Captava as cores com seus significados e decifrava o código. A imagem não era a mesma todos os dias. Uma folha roxa caída no chão ou um pássaro verde a voar faziam toda a diferença na mensagem final. Afinal, eles eram uma cor a mais, um significado a mais (ou a menos).
E assim, Catarina trabalhava as cores em sua tela. Usando a escala cinza para os "sem-sentido", como ela própria era e envolvendo-o com o colorido do significado que pretendia dar. Às vezes Catarina não pensava em dar significado nenhum. Cabe ao espectador fazer a própria leitura das cores à sua frente.
O sentido é a cor.
O palpável é a cor.
O significado é a cor.
A lógica é a cor.
A razão é a cor.
O sentimento é a cor.
A cor é tudo. E tudo é cor.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Metáforas

Azul,
verde,
vermelho,
laranja,
lilás,
dourado,
branco.
Cores.
Sentimentos.
Equivalências, representações.
Ligue os pontos,
as cores,
os sentimentos.
Serenidade,
esperança,
raiva,
alegria,
sono,
luz,
paz.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

José

José nasceu.
Nasceu porque é um ser vivo que faz parte do Reino Animal. Nasceu como todos os bichos que existem. E humanos.
José não seria gente se não tivesse nascido.
Seria talvez alguma coisa invisível. Um ser fruto da imaginação de sua mãe. Seria qualquer coisa, menos um humano.
Ele era um ser estranho, com uma aparência exterior completamente fora dos padrões de beleza e com umas manias esquisitas. Era o excluído da sociedade. Mas ainda assim era um humano.
Muitos não se davam conta disso. Muitos esses que tinham a visão turva ou nula, provocada pelo véu do preconceito. Viam-no como um ser bizarro.
Mas aos sete anos, José já era um menino bom. Perdoava a todos que o achincalhavam, compreendia que esta deficiência da visão poderia ser pior que suas feições feias. Não ligava quando o chamavam de menino alienígena na rua e continuava a brincar, descendo de carrinho de rolimã ladeira abaixo. Continuava se divertindo. E era feliz.
José era o menino dos olhos de sua mãe. Mesmo feio e com comportamento estranho, ele era o filho que ela tanto desejara. E ela acreditava nas fantasias de José.
José tinha os pés voltados para trás. Assim como o Curupira. Ele acreditava que também era o protetor da floresta e pintou o cabelo de vermelho com papel crepom. Mas ele não era o Curupira; ele era o José, um ser humano que nasceu. Curupira não nasce, simplesmente existe, e o José nasceu.
Ia para a mata nas proximidades, ficava cerca de três, quatro horas tomando conta e voltava. Para brincar de carrinho de rolimã. Ou para comer as jabuticabas do pequeno pomar da sua casa.
Até que um dia ele foi e não voltou. Alguns dizem que ele encontrou o Curupira verdadeiro. Outros, que ele se tornou um. Outros ainda, que ele se tornou uma planta. A verdade ninguém sabe. Ninguém se interessa. Os cegos ficaram aliviados com o sumiço do ser bizarro. A mãe achava que José tinha virado santo das florestas e rezava para ele todos os dias.
Mas o mais provável é que José tenha morrido. Afinal, José era um humano. O ser humano é um ser vivo. E todo ser vivo morre um dia.
Se morreu ou não, não importa. Vivo ou morto, humano ou sobrenatural, José virou uma lenda.

Eu era uma menina

Eu era uma menina quando tudo aconteceu. Não tinha idade para entender o quão grave era aquilo. Mas sabia que o curso da minha vida mudaria para sempre.Sabia que não veria mais minha mãe. Chorei. Não pela dor da perda, até porque eu não compreendia isso. Chorei por me sentir indefesa. Afinal, é assustador para qualquer um ver uma poça de sangue, imagine para uma menina.
Eu estava dormindo, agarrada a um tigre de pelúcia quando ouvi um grito. Um grito de mulher. Senti medo. Cobri minha cabeça com a coberta. Ouvi outro grito, ainda mais medonho. Continuei debaixo da coberta e tapei os ouvidos. Não sei quanto tempo fiquei assim. Só sei que me pareceu uma eternidade.
Os gritos cessaram. Tudo ficou no mais completo silêncio. Não ouvia nada além do cochiar dos sapos lá fora.
Não dormi mais naquela noite. Quando o sol começava a despontar no horizonte, tomei coragem e me levantei.
Mas eu não sabia que o pior ainda estava por vir. Eu não sabia o que veria. Muito menos, que eu não aguentaria. Eu era uma menina!
Na minha inocência, a primeira coisa que pensei foi que tinham feito arte na sala com tinha vermelha. Até ver o corpo de minha mãe, caído no chão, inerte e inanimado. Foi então que entendi que o vermelho era sangue. Vomitei, horrorizada. Não sabia o que pensar. Não pensei. Apenas agi. Corri lá para fora. O sol estava nascendo e o orvalho da noite molhava meis pés descalços.
Fui encontrada horas depois à beira do riacho, jogando pedrinhas na água. Me levaram para casa, minha mãe não estava mais lá e o sangue também não.Minha avó me pegou no colo e me ninou. No dia seguinte, me levou consigo. Fui morar na cidade grande. Os sapos, os grilos, a grama molhada pelo orvalho da noite ficaram para trás.
Eu era uma menina que nunca tivera pai. Agora também não tinha uma mãe.
E eu era só uma menina.

©2007 '' Por Elke di Barros